Diz o pensador contracolonial Antônio Bispo dos Santos (2023) que o colonialista tem como primeira atitude renomear. No romance distópico Porco de Raça (2021), de Bruno Ribeiro, um professor nordestino negro é chamado de “Porco Sucio”, precisando utilizar uma máscara de porco para lutar em um ringue clandestino, para o deleite de um público de forte influência política – parte da elite econômica global. Este mercado humano busca apagar o passado do protagonista, objetificar o seu presente e anular a possibilidade de tecer o seu futuro. A distopia de Ribeiro aponta para o projeto imperial que, desde a Idade Moderna, tentou recriar um estado paradisíaco e desenhar futuros eurocristãos, construindo o “novo mundo” como “folha em branco” (TODOROV, 1987; LIENHARD, 1992). Parafraseando Foucault, tais utopias foram uma terrível “distopia realizada” (FOUCAULT, 2003) para os povos da América Latina e Caribe com legados até hoje. Nesse sentido, a estruturação colonial do mundo posiciona os sujeitos periféricos no limite inferior da hierarquia étnico-racial, desvalorizando a sua produção de conhecimento (BALLESTRIN, 2013; RUBBO, 2018).

No entanto, os povos que os colonizadores queriam subjugar encontraram formas de resistir, subverter, questionar, opor-se ao “sistema-mundo colonial-moderno” (MIGNOLO, 2007). São estas articulações e estratégias que, para este dossiê, abordamos com a ideia de “tecer futuros”. Resistindo à imaginação destes povos como verdadeiros colonizados, Antônio Bispo adverte: “Eu sou quilombola, não fui colonizado […] se você foi colonizado […], você vai precisar lutar para se descolonizar […]. Então, no meu caso, eu tenho que contracolonizar – contrariar o colonialismo” (BISPO apud ABUD, 2023). Assim, os estudos contracoloniais surgem como um complemento às propostas decoloniais que se baseavam no diagnóstico de lógicas eurocêntricas e no resgate de conhecimentos subalternizados. Os estudos contracoloniais centram-se na prática e nas vivências indígenas ou quilombolas de cosmopercepção de um “modo agradável de viver” e suas expressões nas artes, que entram em disputa com a compreensão de cultura enquanto eurocentrada.

No século XXI, a crise do eurocentrismo coincide com a projeção de um “futuro como catástrofe” (HORN, 2014) – “apocalítico” – que se preocupa pela vida desperdiçada e pelos recursos desgastados em empresas neocoloniais ou neoliberais, explícitas ou sub-reptícias, ativando a dor dos seus tecidos cicatrizados (MARTINS, 2021; KRENAK, 2019). O ato de tecer não é necessariamente inocente, podendo estar inserido em práticas de violência colonial e/ou heteropatriarcal, cosidas de maneira literal ou metafórica nos corpos, explicitando desigualdades, como nos sistemas de pigmentocracia ou colorismo (WALKER, 1982). Mas o tecer e o tecido – e o campo semântico em seu entorno: fiação, tecelagem, entrançamento, rendas, nós, tricotagem, bordados e costura – também fazem referência a contextos sociais, cosmológicos e orgânicos não-eurocentrados. Sem romantizar “outras” técnicas culturais, o tecido refere-se simbolicamente ao destino e ao tempo, à habilidade do trabalho manual, às relações afetivas e às estruturas literárias (BUTZER e JACOB, 2021). O ato de tecer contraria e distorce a colonialidade – como os quipus, um sistema de comunicação andino através de nós, ou o trançar erva-doce da botânica Robin Wall Kimmerer (2013). Tecer baseia-se na presença e na solidariedade, interrompindo a distância intelectual entre sujeito e objeto: “The classic disciplines always ask us to be disembodied artists, disembodied authors and theorists” (KILOMBA, 2017). Neste dossiê, convidamos explicitamente contribuições moldadas com nossos corpos e nossa memória, afirmando-nos como agentes performativos, e propondo a escrita acadêmica e artística em primeira pessoa. Assim, pretendemos discutir as aplicações metafóricas ou concretas da “tecelagem” dos futuros contra/coloniais, e os traços utópicos e distópicos que essas visões do futuro assumem em obras literárias e em outros formatos.

Convidamos a submeterem seus artigos (25.000- 50.000 caracteres) às editoras:

Danae Gallo González (Justus-Liebig-Universität Gießen), Danae.Gallo-Gonzalez@romanistik.uni-giessen.de
Susanne Grimaldi (Technische Universität Dresden), susanne.grimaldi@tu-dresden.de
Mylena Lima de Queiroz (Universidade Federal da Paraíba), myi@hotmail.com.br
Romana Radlwimmer (Goethe-Universität Frankfurt), radlwimmer@em.uni-frankfurt.de

O volume será publicado como número especial da revista outra travessia:
https://periodicos.ufsc.br/index.php/Outra/announcement/view/1999

Diretrizes de submissão:
https://periodicos.ufsc.br/index.php/Outra/about/submissions

Prazo para submissão: 29 de fevereiro de 2024.

Bibliografia

ABUD, Marcelo. O que é contracolonial e qual a diferença em relação ao pensamento decolonial? Em: Instituto Claro. Educação. 21 de março, 2023. Disponível em: https://www.institutoclaro.org.br/educacao/nossas-novidades/podcasts/o-que-e-contra-colonial-e-qual-a-diferenca-em-relacao-ao-pensamento-decolonial/
BALLESTRIN, Luciana. “América Latina e o giro decolonial”. Revista Brasileira de Ciência Política, nº11. Brasília, maio – agosto de 2013, pp. 89-117.
BUTZER, Günter e JACOB, Joachim. “Gewebe“, em Metzler-Lexikon literarischer Symbole, vol. 3, ed. Günter Butzer und Joachim Jacob. Metzler, 2021: 149-151.
FOUCAULT, Michel. “Andere Räume”. Tradução de Walter Seitter. Em Moravánszky, Ákos (ed.): Architekturtheorie im 20. Jahrhundert. Eine kritische Anthologie. Springer, 2003, pp. 549-556.
HORN, Eva. Zukunft als Katastrophe. Warum wir unsere Zukunft schwarz malen. Fischer, 2014.
KILOMBA, Grada. “The Most Beautiful Language”, em Exhibition Catalogue. Lisboa: EG-EAC, 2017.
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. Companhia das Letras, 2019.
LIENHARD, Martin (ed.). Testimonios, cartas y manifiestos indígenas. (Desde la conquista hasta comienzos del s. XX). Biblioteca Ayacucho, 1992.
MARTINS, Leda Maria. Performances do tempo espiralar: poéticas do corpo-tela. Rio de Janeiro: Cobogó, 2021.
MIGNOLO, Walter. La idea de América Latina: La herida colonial y la opción decolonial, Gedisa, Barcelona.
SANTOS, Antônio Bispo dos. A terra quer, a terra dá. São Paulo: Ubu Editora, 2023.
RIBEIRO, Bruno. Porco de Raça. Rio de Janeiro: DarkSide Books. 2021.
RUBBO, Deni A. Aníbal Quijano e a racionalidade alternativa na América Latina: diálogos com Mariátegui. Estudos Avançados, v. 32, n. 94, p. 391-409, dez. 2018.
TODOROV, Tzevtan: La conquista de América. El problema del otro. Trad. Flora Botton Burlá. México D.F./Madrid: siglo XXI editores 1987 1982.
VIGNOLO, Paulo e BECERRA, Virgilio (eds). Tierra Firme. El Darién en el imaginario de los conquistadores. Universidad Nacional de Colombia, 2011.
WALKER, A. “If the present looks like the past, what does the future look like?” 1982. In: WALKER, A. In search of our mothers’ gardens: womanist prose. San Diego, California: Harcourt Brace Jovanovich, 1983, p. 290-291.

Beitrag von: Romana Radlwimmer

Redaktion: Robert Hesselbach